sexta-feira, 11 de julho de 2014

Ouro no barraco: o livro, capitulo 1, parte 2 (a cobra fumando)

Na balsa, peão fez uma festiva algazarra com a chegada do café. “Caranguejo” me saudou em primeiro lugar: “Ei, ‘Lampião’! Nós estamos bamburrados e as putas não sabem!”. “Chico Índio”, por sua vez, sequer esperou a voadeira encostar para me exibir a última cuiada, feita na terra rica, por baixo da sarrapilha. A tocha amarelo-vivo brilhando úmida no fundo da cuia despertou o meu contentamento, mas não excitou a minha ambição. Já estou acostumado com esses ouros comerciais. Por via das dúvidas, em respeito à alegria da peonada, descarreguei o meu trinta-e-oito para o alto, exibindo de propósito a minha rapidez no gatilho.
Depois da rajada e dos gritos de guerra de sempre, calculei de imediato que aquela puxada renderia, no mínimo, duzentos gramas, ouro suficiente para fazer uma avionada de óleo e outra de rancho. A rotina de um balseiro não permite devaneios. O rigor que a extração do ouro exige atenua com o tempo o apelo mágico do metal. O poder sedutor do ouro é parecido com a atração provocada por uma linda mulher. Seus encantos se desfazem lentamente a cada sessão de amor. “Locutor”, o terceiro mergulhador, me saudou com um martelo na mão, em pleno trabalho de despesca da caixa debaixo.
Quando o “Barbudo” estava sadio, mandei montar a cobra-fumando do outro lado da pequena ilha onde estávamos acampados. No lugar, um remanso calmo e quase escondido, existia uma praia de verão escurecida pelo esmeril de um curimã antigo. Lá estou lavando minha terra rica há mais de dois meses. O novo curimã já engordou, fez uma praia nova e está quase no ponto de uma repassagem. Vando, o dono de uma croíra quatro-polegadas, me pediu outro dia o direito de repassar minha terra. Eu lhe disse que iria esperar a estiagem se firmar para liberar o curimã para os requeiros. Vando não gostou da minha decisão, fez cara feia e me disse: “Porra, ‘Lampião’, os curimãs dos garimpos são públicos. Eu estou lhe pedindo por uma questão de educação”. Falando desse modo, ele insinuou que poderia apoitar no meu porto quando quisesse. Eu me zanguei com a mariscagem do Vando e respondi, em cima da bucha: “Esta ilha, no momento, está sob meu domínio. O porto fui eu quem fiz, a cobra é de minha propriedade e o curimã eu libero quando eu quiser, para quem eu quiser”. Acho que minha resposta foi bem entendida. Com essa estrovada, Vando ficou velhaco e mudou o seu barraco para outro canto do rio.
Esse apelido, “Lampião”, que o “Tião Fera” inventou há alguns anos, parece que me protege. Qualquer peão sabe a história do verdadeiro Lampião. No sertão da Bahia, onde nasci, a fama do Virgolino é tão grande que ninguém ousa apelidar alguém com esse nome. No garimpo, onde tudo é possível, me batizaram desse modo e não há nada que eu possa fazer para apagar esse apelido. Não tenho apelo. Vou morrer um “Lampião”.
Minha cobra-fumando já lavou muito ouro. Eu a carrego desde o rio Crepori onde, um dia, na fofoca do “Jenipapo”, despesquei com quase quilo e meio do metal. Essa lavagem, que exigiu três empanamentos, não deixou soltar um fagulho para os requeiros. A cobra é mansa de boas despescagens e os peões não se cansam de falar bem dela. A limpeza final do ouro é o momento mais delicado do garimpo. Hoje, diante desta considerável despescagem, decidi assumir a limpeza até o fim. Por uma questão de prudência e seguindo à risca os zelos que o metal exige, dei um demorado banho de fogo nas cuias e nas bateias, a fim de eliminar qualquer traço de gordura. Quando atracamos a voadeira para lavar a terra no porto do curimã, “Caranguejo” me disse que, depois da queimada, desejava ter um particular comigo. Perguntei qual era o assunto, pensando em algum problema ligado à balsa e ele me respondeu: “Eu quero apenas uns conselhos do senhor sobre uma questão de mulher”. Notei que “Caranguejo” estava preocupado, embora participasse da alegria coletiva em torno da boa despescada. Percebi também que ele me chamou de “senhor”, tratamento que peão maranhense só usa em situações muito sérias. Acho que o “Caranguejo” está envacorado por uma mulher do cabaré do “Bigode”. Mas, no momento, a minha preocupação é a empanação da cobra-fumando.
Naturalmente, e sem que eu mandasse, cada peão assumiu um posto na lavagem da terra rica. “Locutor” escolheu o desembarque do material, “Chico Índio” quis bater água e “Caranguejo” ficou na aparação da bateia. Eu, o empanador do dia, fiquei no ralo. A terra rica, que não era muito, foi lavada em pouco mais de meia hora. O trabalho maior é a despescagem. Nesse caso, sabendo de antemão que os panos estão carregados de ouro, é preciso sacudi-los com muito cuidado.
Eu disse aos meus peões que a lavagem na cobra-fumando é a missa sagrada do garimpo. Eles sorriram. “Caranguejo” interveio, comentando que estou sempre mexendo com palavras difíceis. Mas, é verdade o que eu disse. Os cuidadosos e medidos movimentos da despesca e a limpeza da terra rica são sempre acompanhados de um compenetrado clima de respeito. Quando o ouro fica visível em meio ao esmeril e começa a escorrer pelos cantos da cobra, o garimpeiro é tomado por um sentimento de embevecimento superior. Nesse momento ninguém fala. No meu caso, não tenho vergonha de dizer que fico emocionado. Na seqüência desse cerimonial, gosto de encaminhar o ouro para o balde com suaves golpes de água. Assim, o metal não bóia, desce lentamente no rumo do rabo da cobra e não perco um só fagulho do metal. Quando estamos bem mansos nesse trabalho é possível limpar o ouro sobre a cobra e evitar o azougamento. Os garimpeiros manuais sabem fazer isso muito bem.

No fim da nossa missa, quando o converseiro foi retomado com animação, lembro que o “Locutor” apontou o ouro e exclamou: “Isto aqui não é bosta-de-macaco, não, peão!” “Caranguejo”, entre outros comentários, repetiu uma frase do pessoal do baixão, sempre dita em cima de bamburro ou ourinho de vantagem: “Se algum dia já fui blefado, hoje não me lembro!”. “Chico Índio” não deixou por menos e comentou, sorridente: “Ei, ‘Lampião’, num ouro desse eu me aconsôo e fico velhinho!”. Encerrei a despesca, gritando sem inspiração: “Eta, porra! Caralho!”.

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