terça-feira, 2 de setembro de 2014

A mulher no garimpo

Para representar a mulher no garimpo, escolhemos um texto de Rubens Santos Cardoso, vulgo Lampião: Garimpeira Catarina
Rubens é jornalista, garimpeiro, escritor e foi fundador, diretor e editor do Jornal do Ouro (versão papel) de 1983 a 1984.


Antes de pular da rede ela se ofereceu uma meia hora de reflexões entremeada por uma breve oração encaminhada a Nossa Senhora de Nazaré, prece que ela só fazia na solidão da mata e sob a pressão dos riscos e perigos da natureza amazônica. Indiferente ao frio cortante do fim da madrugada e a penumbra que insistia em retardar o dia nascente, ela reacendeu o fogo do pau peruana e num instante fez o café, preparou o leite e fritou uns bem-nhem- nhens de farinha de trigo. Os macacos roncadores ainda faziam o tenebroso barulho matinal quando ela deixou o barraco da cozinha onde havia instalado o seu sumário quartel general, e entrou num barraco adjacente no qual os garimpeiros Zé do Tilin e Abacaxí,  dormiam indolentes sob a ação uma malária de pelo menos quatro cruzes cada um. Paciente, ela ofereceu o café da manhã aos doentes que recusaram como vinham fazendo há pouco mais de duas semanas, quando foram tomados pela Marlene cruzada certamente entre o Vivax e a Falciparum. Desamparada e sem poder contar com os peões nos trabalhos de exploração que havia iniciado há pouco mais de um mês, ela havia tomado a séria decisão de cavar sozinha o cinco quadrado que os peões haviam iniciado no centro de uma prancheta que revelou  um ouro de pelo menos 500 gramas na puxada.  A decisão de passar os dias alternando a peula e a picareta no fundo de um barranco cada dia mais húmido e enlameado não estava nos planos da nossa Catarina, garimpeira mansa habituada a trabalhar com os pés limpos e sempre embarcada em balsas de extração de ouro. Ela virou tatuzona por força da fofoca confusa que estourou nas matas roraimense. Esta mudança de rumo e o novo metódo de trabalho não lhe agradava nem um pouco. Somente a esperança de fazer um ouro ligeiro foi capaz de empurra-la naquela aventura que já estava lhe custando quase um quilo do mesmo metal, parte da reserva do desafôro que ela havia jurado nunca tocar para financiar explorações semelhantes.
A bem da verdade que marcará o fio dessa história até o fim, vale explicar ao leitor que a Catarina não tinha nenhuma experiência em garimpagem de baixões. Varar dias sem fim fazendo pranchetas aqui acolá, pegar na peula ou na picareta, fazer o limpo de serviço removendo a capa do lacrau, deslocando pedras e arrancando raizes profundas, baixar uma dama de cinco, emparedar um barranco, fazer uma varrida e lagresar um serviço sem deixar reco, fazer um barraco debaixo da chuva, fazer um tilin para corrigir a passagem de um chorador, empanar uma cobra fumando, fazer uma dália com Paxiúba, cortar no machado os paus Peruana ou Boa Macaca, para fazer lenha, fazer um corredor afim de preparar uma espera num mutá, limpar terra rica sem azouge, carregar um jamanxim de quase quarenta quilos nas costas, etc. Em relação a estas coisas novas e assustadoras para uma dama de bem, Catarina se aconsoava respaldada com a experiência de trecho provada em quase quinze anos de vais e vens nos garimpos de balsas do Alto Tapajós, além de uma demorada e lucrativa temporada na fofoca do rio Madeira, no tempo que havia ouro em banda de lata. Lá, nas aguas do indomável Madeirão ela havia montado um imenso cabaré flutuante com o qual bamburrou e em consequência obrigou-se prevenir o futuro comprando uma casa boa e dois terrenos nos arredores de Belém.

Catarina não era uma mulher perdida na imensidão da mata amazônica a exemplo das prostitutas submissas aos caprichos dos cabarés de garimpo, ou das cozinheiras espremidas entre a responsabilidade de fazerem o café, almoço e a janta do dia a dia e eventualmente aliviar a carência sexual-afetiva do patrão ou dos peões do barraco. Longe disso, embora ela não negasse a ninguém que havia começado a sua vida de trecho integrando uma avionada de putas encomendado por um cabaré da pista do Rui, no rio Marupá, lá nos Altos. Distante desse passado que não a envergonhava, nossa garimpeira era antes de tudo uma mulher determinada, de personalidade forte e dona de uma simpatia sem defeitos. O rosto bonito, iluminado por grandes olhos cor de mel, além de um corpinho mignon, quase gordinho, fazia dela uma mulher realmente interessante. A sua pequena estatura ampliava o seu charme. Ela é irresistível, diriam alguns peões que haviam tido a sorte de frequenta-la. É difícil pretender enfeitar a imagem de uma mulher que vive na mata, sob o mal trato permanente de um clima rigoroso e todas as adversidades que fazem parte do ambiente, sem contar as doenças endêmicas. Querer contar vantagens maiores sobre as qualidades de Catarina não tem muito sentido, até porque eu nunca a frequentei. Sei somente que ela era uma mulher que se cuidava em qualquer circunstância. Assim, os peões malarentos Zé do Tilim e Abacaxi, não achavam estranho o rouge delicado e o baton discreto que a patroa exibia todo começo de dia. Quem sabe, a visão de uma mulher limpa, cheirosa e bem cuidada de manhã cedinho não exercia algum efeito regressivo na malaria braba que estava maltratando os peões?

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