texto enviado por Fernando Lemos
Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um
pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.
Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante
a circunstância que dá princípio a esta narrativa. Chegou uma vez ao pé dele
certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui
umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas
por vinte mil réis cada uma.» «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando
logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse;
«isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco
regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.
Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos
negociantes de gado como ele a diferença de uma conta, no valor certo de um
conto de réis. No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o
pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade,
quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário.
Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária
conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E,
puxando da carteira, perguntou se, se importavam de receber tudo em notas de
cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se
entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção
do irmão para as notas, que se via que eram de cem.
Houve então a troca de outro olhar.
O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que
entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu
em olhar mais para elas. O vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu
e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse
que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão.
Ditava ele o recibo, disse, pois queria as coisas todas certas. E ditou o recibo
– um recibo de bêbedo, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas,
na taberna de fulano, e «estando nós a jantar (e por ali fora com toda a
prolixidade frouxa do bêbedo...), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário,
do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto
de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi
assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda
mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.
Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a
primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa,
e o mesmo fez à segunda e à terceira... E os irmãos, olhando então
verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar.
Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo
atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o
havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse
perdido.
Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o
pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que
provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se
eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário «nem eu estava tão bêbedo
que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que
são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça foi mandado em
paz.
O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a
história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a
imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem.
Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre
ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do
estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande
português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como
constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento
dos próprios grandes mestres da Realidade – nem um leve brilho de olhos de
Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile,
Marquês de Halifax.
Contado por Fernando Pessoa.
Casos de contos do vigário já contados no JO:
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